Ultimamente, por maus motivos, tem-se falado muito no Kosovo que, é esperado, declarará unilateralmente a independência da Sérvia, a partir de 10 de Janeiro de 2008. Geralmente, como seria de esperar, tem-se falado muito e tem-se falado mal, por intenção ou ingenuidade.
Dito deste modo, poderia parecer que considero "maus motivos" falar-se da independência de um povo. Como é óbvio, não é o caso. Aliás, um dos aspectos curiosos neste assunto é a aparente inversão de ideais que parece grassar nos favoráveis e contrários à independência do Kosovo.
Deste modo, é interessante notar que aqueles que mais ferreamente sempre lutam contra a autodeterminação dos povos, leia-se direita e amplas franjas de uma certa esquerda, agora a defendem; do outro lado, que a esquerda a sério, mais a autodenominada esquerda democrática (leia-se PS e facção social-democrata do Bloco) e esquerda meio-termo (leia-se facção esquerdista do Bloco), agora sejam contra.
Ou seja, que quem defende a autodeterminação curda, palestiniana, basca ou corsa, por exemplo, é agora (unicamente) contra a kosovar, defendendo a soberania sérvia. E que quem nunca defendeu a autodeterminação desses mesmos povos, em nome da soberania dos países onde se "integram", agora defenda (unicamente) a dos kosovares.
Poder-se-ia sugerir, à partida, que existiria uma contradição entre soberania de um país a autodeterminação de povos que aí residam, semelhante à (suposta) contradição entre liberdade e igualdade. Seria, portanto, necessário decidir qual o ideal a defender. No entanto, estas são contradições no mínimo simplistas, no máximo puramente falsas.
Parece contraditório defender simultaneamente autodeterminação e soberania?
Não é. Porquê? Porque não existe um povo kosovar.
Posto simples e directo, aprofunde-se um pouco a questão. Noto no entanto, desde já, que não procuro fazer uma análise exaustiva da questão jugoslava, apenas sobre este aspecto específico da independência do Kosovo. A quem interessar o tema, aconselho vivamente a leitura de duas obras: "Quem Matou a Jugoslávia" de Milan Rádos, e "Cruzada de Cegos" de Diana Johnstone, entre outras naturalmente dignas de mérito (quando comecei a redigir este texto, tencionava deixar um link para um ensaio sobre o tema, da minha autoria, que agora lamentavelmente não consigo encontrar...).
Como é óbvio, não poderia nunca deixar de apoiar a autodeterminação de qualquer povo. Apoio a autodeterminação palestiniana, basca, corsa, curda e quaisquer outras de um povo, que efectivamente o seja. Ora, no Kosovo há sérvios e há albaneses, kosovares são mito para justificar uma independência injustificável por quaisquer critérios que não sejam o mais puro imperialismo.
Não entrando numa análise do papel do imperialismo europeu e norte-americano no desmembramento da Jugoslávia (tal, como referi, podem aprofundar nos textos suprareferidos), certo é que a independência do Kosovo inscreve-se precisamente no penúltimo passo deste processo de demolição de um Estado federado soberano, tendo o primeiro passo sido dado com a Eslovénia e sendo o último, prevê-se, a Vojvodina.
A Jugoslávia de construção socialista, não se vergava ao imperialismo. Mesmo nos seus últimos tempos, resistia à ofensiva europeia e norte-americana, sendo o centro dessa resistência, dentro da Jugoslávia, a Sérvia, e as suas partes mais frágeis a Eslovénia e a Croácia. Ora, não conseguindo vergar a Jugoslávia una, o imperialismo virou-se para uma estratégia tão antiga como a própria guerra: dividir para reinar.
Daí se iniciou o desmembramento, de início com a secessão da Eslovénia seguida da Croácia, e posteriormente da Bósnia. Daí se geraram as guerras dos Balcãs, onde amíude se falsamente retratou o povo Sérvio como assassinos bárbaros e os demais como pobres oprimidos, ignorando-se conveniente e deliberadamente que os primeiros confrontos servo-croatas se iniciam com o genocídio e deportação dos sérvios residentes na Croácia, o mesmo tendo posteriormente ocorrido com os sérvios-bósnios.
Em rigor, podemos no que toca a estes conflitos e secessões, falar em povos que "quiseram" (quereriam mesmo?) a sua independência. Porque quaisquer deles, croatas, eslovenos ou bósnios, eram efectivamente povos prévios à criação da Jugoslávia. O mesmo se aplica à recente independência do Montenegro. Na verdade, a questão quanto aos bósnios é mais discutível, uma vez que o seu território foi historicamente povoado e disputado ora por sérvios ora por croatas, sendo deste modo os bósnios uma mistura dos dois outros, que na Jugoslávia viria a ser definido como um povo em função da religião, muçulmana (aliás, quanto a mim, erro crasso da governação federal jugoslava, mas isso é outra discussão).
Ora, quanto ao Kosovo, o mesmo se podendo dizer da Vojvodina, este pressuposto, quanto a mim essencial se pretendemos falar em autodeterminação, não se verifica. Aliás, o facto de na Jugoslávia, os outros serem Repúblicas e estes Províncias, já será um pouco esclarecedor.
Kosovo e Vojvodina são dois territórios de há muito sérvios que, na Segunda Guerra Mundial, foram entregues pela Alemanha Nazi, respectivamente, aos regimes fascistas colaboracionistas da Albânia e Hungria. No decorrer da Segunda Guerra, sendo a Sérvia a única região balcânica que não se ajoelhou e adoptou o fafascismo colaborador, foi pelo Eixo castigada, sendo partes do seu território entregues à Croácia, Albânia, Hungria, Macedónia e Bulgária.
Ora, é precisamente neste contexto, que duas regiões sérvias passam para controle de outras nações, que nos anos que durou o conflito mundial, erradicaram a população sérvia existente, substituindo-a por albaneses no Kosovo e húngaros na Vojvodina. Com o fim da Segunda Guerra e a vitória, nos Balcãs, dos partisans de Tito, a Jugoslávia reformou-se, passando a integrar novamente estas duas províncias, como autónomas na Jugoslávia mas pertencentes à Sérvia.
Deste modo, o que daqui se conclui é que Kosovo e Vojvodina são inequivocamente território sérvio, e que não existe, nem existiu, qualquer povo kosovar, antes albanês. Que obviamente, na minha opinião, tem todo o direito em lá residir, mas não tem de modo algum o direito a exigir a independência de um território para o qual imigrou.
A força que muitos fazem pela independência do Kosovo inscreve-se na acção imperialista da Europa e Estados Unidos, após o desmembramento. Efectivamente, após o ajoelhar da Croácia e Eslovénia, com a Bósnia ocupada por "forças de paz", a Sérvia viria a manter-se resistente aos ímpetos imperiais. Tornou-se, portanto, necessário encontrar novos meios de continuar a dividir a região. A solução encontrada foi, como se sabe, a farsa da limpeza étnica no Kosovo que, tal como no passado, teve como início do conflito o ataque à população sérvia, servindo a seguinte retaliação do exército como motivo para o ataque da NATO, que viria a ocupar a região para preparar a secessão de mais uma fatia de território.
Como é óbvio, penso que se percebe que a minha posição contrária à independência do Kosovo nada tem a ver, quer com saudosismos da Jugoslávia, quer com a posição russa de não abrir precedentes, uma vez que, quanto à autodeterminação dos povos, todo o precedente é pouco.
E esta é uma posição que contrasta claramente com a hipocrisia de quem hoje defende o direito à autodeterminação dos supostos kosovares, quando em simultâneo contribui directa ou indirectamente para a opressão de povos reais que aspiram à sua independência.
Penso que ficam claros os meus motivos: pela autodeterminação dos povos, sempre. Mas dos povos de facto, não de farsas criadas pelo imperialismo europeu e norte-americano para justificar assaltos à soberania de nações, com o fito de as desmembrar e mais facilmente pilhar. Autodeterminação dos povos, sem dúvida, mas no kosovo não há kosovares, apenas sérvios e albaneses, com os seus respectivos países.