Este artigo é motivado por uma notícia que vi há pouco no telejornal da SIC, relativo a conflitos numa empresa da Amadora. Ora o que se passou foi uma carga policial sobre um conjunto de trabalhadores desarmados, cujo "crime" foi defender o seu posto de trabalho, reivindicar os seus salários em atraso e lutar contra o encerramento da sua empresa.
Portanto, as forças policiais do Estado tomaram a decisão de carregar sobre trabalhadores que tentavam impedir a saída de camiões da empresa, com maquinaria no seu interior. A polícia justifica a sua actuação com base na defesa da propriedade privada do dono da empresa, podendo-se portanto concluir que opta por defender quem tem contra quem não tem, quem manda contra quem obedece, quem come fartamente contra quem tem salários em atraso.
Conclui-se então que o Estado, por meio das suas forças de segurança, em nome da defesa da propriedade privada, toma o partido do patrão contra o trabalhador, do capital contra o trabalho, do burguês contra o proletário. Verifica-se portanto que, na óptica do Estado, a propriedade privada é algo a defender a todo o custo, ainda que tal implique o espancamento de trabalhadores e detenção de sindicalistas, que mais não reivindicam que o que é seu por inalienável direito, o justo pagamento por trabalho já feito, leia-se muitos salários em atraso, portanto menos importantes que a propriedade de um.
De que nos pode servir este acontecimento para reflectirmos sobre o papel do Estado na sociedade? Este exemplo mostra que, quando tem de optar entre defender os interesses do patrão ou os do trabalhador, o Estado (neste caso, a polícia, expressão física da força do Estado) opta por defender o patrão, o proprietário.
Exploremos um pouco mais esta questão.
O que aqui se trata é o tomar de partido, por parte do Estado, de um grupo relativamente ao outro. E que grupos são estes? De um lado temos o conjunto de indivíduos que detém a propriedade dos meios de produção, os patrões; do outro aqueles que têm somente a sua força de trabalho, que assalariam aos primeiros, portanto os trabalhadores. Temos, então, um conflito entre patrões e trabalhadores, defendendo o Estado os primeiros.
Se os principais e essenciais grupos na sociedade são as classes sociais, e se estas se definem pelo papel que desempenham nas relações sociais de produção, temos então que se na sociedade capitalista a produção económica se estrutura em torno da propriedade dos meios de produção, decorre daqui então que as classes sociais se dividem entre quem tem e quem não tem propriedade privada de meios de produção. Dividem-se, portanto, entre patrões e trabalhadores.
O que concluimos é então que o Estado não se situa acima da sociedade, nascendo dela, mas igualmente que não serve propósitos conciliadores dos diferendos e conflitos das classes existentes na sociedade, servindo sim os interesses de uma contra a outra.
O Estado não é de forma alguma um poder situado acima da sociedade e separado desta, mas sim um produto da própria sociedade em determinada fase do seu desenvolvimento. Mais concretamente, o Estado surge a partir do momento em que as contradições das classes sociais já não podem de forma alguma ser conciliadas. Desta forma, a formação do Estado é precisamente a prova de que as contradições de classe são inconciliáveis. E é precisamente por serem inconciliáveis que é necessário um poder, o Estado, que, aparentemente situado acima da sociedade, modere o conflito de classes e estabeleça uma ordem que impeça as classes antagónicas e inconciliáveis de se destruírem e à sociedade.
Nascendo o Estado da existência de classeantagónicas, mas nascendo no seio do conflito dessas classes, é inevitavelmente o Estado da classes mais poderosa, a classe economicamente dominante que assim se torna igualmente politicamente dominante, alcançando novos meios para oprimir e explorar.
E um desses meios é o uso das forças de segurança do Estado na defesa dos interesses do patronato, tal como hoje ocorreu, demonstrando a relação entre as forças armadas e policiais do Estado e a sociedades de classes antagónicas, inconciliáveis e hostis. A transição da sociedade gentílicapara a sociedade dividida em classes, acompanhada do desenvolvimento do Estado, torna impraticável a organização armada e autónoma da população, o que leva ao aparecimento de uma força pública do Estado, em nada similar à anterior organização da própria população em força armada. Esta força pública desenvolve-se porque, estando a sociedade dividida em classes inevitavelmente hostis, a sua organização armada e autónoma levaria a que a luta de classes se convertesse em luta armada entre as classes. Assim sendo, o exército e a polícia constituem os principais instrumentos de força do Estado, ao serviço dos interesses da burguesia quando deles necessita.
Além do exemplo visto, tal facto verifica-se igualmente nos processos revolucionários, quando após a destruição do aparelho de Estado a burguesia procura manter ou formar as forças ao seu serviço, para combater a revolução, e o proletariado procura criar uma força similar ao serviço da classe trabalhadora: exemplo disto foi a formação do Exército Vermelho e do Exército Branco nos primeiros tempos da Revolução Russa, o segundo ao serviço dos objectivos da contra-revolução da burguesia e aristocracia, sendo o primeiro a nova organização armada do proletariado, para defesa da sua revolução.
Por outro lado, no que respeita às forças armadas do Estado, surgem da necessidade de dar suporte à competição e rivalidades da burguesia à escala global. As duas guerras mundiais são disso exemplo, ligando-se à passagem do capitalismo para a sua fase superior, o imperialismo: a competição da burguesia à escala internacional, geralmente organizada a nível nacional, quando as sociedades nacionais estão nos limites das possibilidades de exploração e não existindo novos mercados para explorar (colonizar), a burguesia é obrigada a competir pela força à escala internacional. E, tal como no plano nacional se serve das forças de segurança do Estado para garantir os seus propósitos rapinadores, no plano internacional serve-se das forças armadas.
Parece-me claro que o Estado não existe portanto desligado da sociedade e de suas contradições, grupos e conflitos. E, se o Estado nasce das classes sociais, então será necessariamente o Estado da classe dominante, portanto na sociedade capitalista o Estado do patronato. Detendo o monopólio da violência legítima, o Estado serve à burguesia enquanto aparelho repressor da classe trabalhadora, atenuando a pujança da luta de classes.
Claro está, há quem não concorde com isto. E entre quem não concorda, podemos radicar as suas ideias em duas origens, a teoria burguesa do Estado e a teoria kautskista da reforma do sistema. Analizêmo-las criticamente.
As classes burguesa e pequeno burguesa, embora forçadas a admitir que o Estado é fruto das contradições de classes e da sua luta, deformam a teoria marxista uma vez que não compreendem, nem podem compreender por força da sua sobrevivência enquanto classe e da sua dominação, que as classes são inconciliáveis. Assim, consideram que as classes não são inconciliáveis, pelo que o papel do Estado é precisamente conciliar os interesses antagónicos das classes; desta forma, defendem que o Estado modera o conflito das classes conciliando-as, assim criando uma ordem baseada na conciliação das classes.
No entanto o Estado, sendo fruto da sociedade de classes antagónicas, como qualquer outra estrutura numa sociedade de classes é inseparável da luta de classes, logo serve uma classe sobre a outra, apoia o domínio de uma classe sobre a outra, pelo que moderar o conflito não é conciliar as classes mas sim retirar a uma classe os meios de resistir à dominação e exploração e dar à outra mais e melhores meios de o fazer: a ordem criada pelo Estado não se baseia na conciliação mas sim na legalização e consolidação da exploração.
Para que se compreenda a justeza da análise marxista e a falsidade da deformação burguesa, pensemos num exemplo bem actual: o actual Código de Trabalho. Embora exista quem o considere um bom contributo para as relações sociais de produção, nomeadamente o patronato (o que, por oposição às posições da maioria dos sindicatos, diz muito acerca de quem o Código de Trabalho serve) e os seus autores, o Governo, é para mim indiscutível que diversas alterações introduzidas para mais não servem que aprofundar a exploração dos trabalhadores pela burguesia: não constituem as limitações à acção sindical (nomeadamente a redução do número de delegados sindicais por empresa) e à contratação e negociação colectiva um retirar de meios e armas aos trabalhadores para se defenderem da exploração burguesa? Não constituem às alterações ao princípio de tratamento mais favorável ao trabalhador (no sentido de abrir excepções a este), aos fundamentos do despedimento por justa causa (no sentido de o facilitar), à mobilidade funcional e espacial, ao direito à greve, para referir apenas alguns exemplos, o aprofundar da exploração dos trabalhadores? Penso que a resposta a estas questões é indubitavelmente afirmativa.
Para mim, o facto do Estado constituir um instrumento de exploração ao serviço da burguesia confirma-se igualmente noutro exemplo, como as privatizações levadas a cabo pelos partidos da burguesia alternadamente, que mais não é que o retirar de direitos aos trabalhadores, entregando-os nas mãos da burguesia, para que converta o que eram direitos em negócios lucrativos. Por último (porque os exemplos dariam para um livro), quando o Estado, sob a mentira da crise económica, impõe aos trabalhadores pesados sacrifícios, queda do poder de compra, venda do património do Estado (logo do povo) e pobreza, enquanto a burguesia lucra cada vez mais (a título de exemplo, o capitalista Belmiro de Azevedo triplicou os lucros no último ano, e os lucros dos bancos multiplicaram-se até níveis há muito não vistos), é impossível falar em conciliação. A segunda grande deformação, de mais difícil compreensão, da teoria marxista do Estado vem de Kautsky. Embora este concorde que o Estado é um instrumento de dominação e que as classes são inconciliáveis, entende que a emancipação do proletariado é possível através das instituições do Estado burguês, mantendo intacto o aparelho do Estado burguês (ou seja, não através de processos revolucionários mas reformistas, sociais-democratas).
No entanto, se o Estado é fruto de classes inconciliáveis e, sendo inseparável da luta de classes, serve uma contra a outra, é óbvio que a emancipação do proletariado exige a revolução violenta visando a eliminação física da burguesia (ou seja, a eliminação do que fisicamente constitui a burguesia como classe, a propriedade dos meios de produção) e a destruição do Estado que a sustenta, substituindo a ditadura da burguesia pela ditadura do proletariado.
Na minha opinião, a comum, embora simplista, afirmação de que os Partidos Comunistas, onde chegaram ao poder, só o conseguiram pela violência e pelas armas, constitui se analisada em profundidade a refutação da deformação de Kautsky. Porque se os Partidos do proletariado, ou partidos progressistas no geral, só alcançaram e mantiveram o poder pela violência revolucionária, é porque tal é impossível sem a supressão revolucionária da burguesia e a instauração da ditadura do proletariado. Penso que dois exemplos que confirmam esta reflexão são o Chile no passado e a Venezuela no presente: após Salvador Allende ser eleito Presidente do Chile e dar início a progressistas reformas, sem eliminar a burguesia e o seu Estado, a manutenção do controle deste por parte daquela levou a que, através do controlo sobre o exército, a burguesia orquestrasse o golpe de Estado, destruísse os direitos recém conquistados e reinstalasse a ditadura da burguesia na sua forma mais extrema, o fascismo.
No caso venezuelano, embora Hugo Chávez tenha sido eleito presidente (eleição essa recentemente reconfirmada em referendo) e encetado reformas progressistas, tendo deixado intacto o aparelho do Estado burguês, foi já alvo de um golpe de Estado preconizado pela burguesia, através das associações patronais, bem como das altas patentes do exército; embora esse golpe tenha sido revertido pela vontade popular, o boicote burguês continuou, com a manipulação de sindicatos com vista a execução de greves e paralisações, além do supracitado referendo, que acabou por relegitimar Chávez. E muito embora ainda se mantenha como presidente, diversas têm sido as tentativas de o derrubar, verificando-se sim que diminuem à medida que o Estado é tomado.
Estão, portanto, verificados vários aspectos.
Primeiro, que não é nunca de surpreender a actuação violenta das forças de segurança do Estado face aos trabalhadores, porque é esse o seu papel e razão de ser, a proveito da burguesia.
Segundo, que inclusivé a acção internacional do Estado serve os interesses do patronato nacional.
Terceiro, que sendo os interesses das classes antagónicos e inconciliáveis, então nunca o Estado pode ter o propósito de conciliar as classes, mas de atenuar a força de uma em benefício da outra.
Quarto, que nunca o sistema social pode ser transformado, sem que seja derrubado o Estado e erigido um novo, que sirva a nova classe em ascenção no processo revolucionário.
Essencialmente, para o que me for apetecendo. Ideias sobre a sociedade, coisas da sociologia, análise de questões políticas... Comentários à actualidade, assuntos pessoais relativizados e quando me apetecer, também dá para chatear alguém.
Sociólogo, 28 anos, residente em Coimbra.
Bolseiro de investigação na área do insucesso e abandono escolares no Ensino Superior.
Mestrando em "Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo".