Esses democráticos partidos do bloco central, leia-se PS e PSD,
decidiram conjuntamente nova Lei Eleitoral Autárquica, profundamente democrática, como é expectável de tudo o que é conjuntamente decidido por tal par maravilha.
Supostamente, dizem os iluminados, as alterações têm por objectivo acabar com a situação de Câmaras Municipais onde, fruto de uma maioria da oposição, o executivo não consegue fazer qualquer trabalho ou tomar qualquer decisão.
O argumento
seria justo, não fosse o facto de fazer de qualquer oposição uma espécie de clube que só trabalha pela negativa, não deixando o poder eleito governar, só porque lhe apetece. Podendo tal obviamente ocorrer, não passa de usar casos isolados para fazer regra.
Reforça, além disso, a ideia absolutamente bacoca, ainda que infelizmente cada vez mais adquirida, que só com maiorias absolutas é possível desenvolver a acção política, como se a essência da acção política não fosse, ou devesse ser, a criação de consensos.
O que nunca é efectivamente dito, é que em somente 13% do total de 308 municípios em Portugal, tal situação pseudo-justificativa se verifica: nos restantes 87%, o executivo eleito tem maioria absoluta.
Desmascarado então o argumento base, observe-se algumas das anti-democrátivas alterações implementadas com esta lei.
Primeiro e fundamental ponto, as Câmaras Municipais deixam de, como até agora, ser eleitas por listas, sendo contituídas à proporção das votações dos vários partidos. Supostamente, mas como já visto, falsamente, era essa situação de possível minoria do partido mais eleito que criaria a dita instabilidade.
A partir de agora, são candidatados somente os presidentes e não listas. O partido mais votado passa a constituir o executivo municipal a seu bel-prazer, obrigatoriamente detendo a maioria absoluta, sendo que os vereadores da oposição não poderão ultrapassar um terço da vereação. Mas tal nem sequer é obrigatório, o partido mais votado pode simplesmente fazer tábua rasa da vontade expressa pelo eleitorado e constituir a Câmara unicamente com vereadores do seu partido. Ou, por exemplo, para dar um ar de graça de democracia, ir buscar para a "oposição" (entre aspas, por motivos obvios) um par de vereadores do partido menos votado,
ainda que outros tenham tido maior votação, já que a escolha é a seu bel-prazer.
O ataque anti-democrático é notório, e em duas frentes.
Por um lado, anula-se a vontade do povo, expressa pelo seu voto. Supondo que este, por sua vontade votando, atribui 40% ao PS, 30% ao PSD, 20% ao PCP e 10% ao Bloco.
O PS teria, neste exemplo, e anteriormente a esta lei, uma minoria relativa, sendo a vereação distribuída proporcionalmente, assim respeitando a vontade do povo. Teria, portanto de acordar com os restantes, ou apenas um, a actividade camarária.
Essa seria a vontade do povo, que não estaria interessado em dar maioria absoluta a um partido. Mas o povo é estupido, e não sabe votar.
Portanto, altera-se administrativamente essa maioria relativa de 40%, para uma maioria absoluta de 66%, sendo que os restantes 33% poderiam ser, por exemplo, do Bloco, o menos votado.
Parece-me obvio, a partir deste exemplo, o carácter duplamente anti-democrático da lei. Pura e simplesmente, a vontade do povo eleitor é administrativamente anulada, e os resultados transformados para gerar uma maioria absoluta que o eleitorado, manifestamente, não desejava.
Por outro lado, mas não menos anti-democrático, ainda que o eleitorado tenha expresso o interesse em ter vereadores de determinados partidos, tal é novamente anulado, deste modo afastando do exercício de cargos de poder os pequenos partidos, em favor do bloco central.
A segunda questão prende-se com as Assembleias Municipais. A alteração implementada para as Câmaras Municipais seria,
supostamente, contrabalançada pelo reforço de poderes das Assembleias.
Supostamente, porque é uma farsa. A única alteração avançada prende-se com a possibilidade da Assembleia poder rejeitar a equipa proposta pelo omnipotente presidente. É muito bonito, o senão é que são precisos nada mais nada menos que três quintos dos deputados municipais para rejeitar a proposta, portanto virtualmente impossível, se olharmos as habituais composições das Assembleias. A mesma regra se aplica à possibilidade de demitir a Câmara.
Aliás, a farsa torna-se bem patente, se considerarmos que o centrão chumbou precisamente as propostas de reforço dos poderes das Assembleias
apresentadas, nomeadamente, pelo PCP, designadamente em matéria do orçamento camarário.
Está, portanto, explicitada a golpada efectivada pelo PS e pelo PSD. Esmaga-se a vontade popular, anula-se os resultados eleitorais, cria-se presidentes quasi-divinos, assembleias inuteis, e maiorias absolutas administrativas. Muito bons, estes partidos símbolo da democracia...
Finalmente,
há quem faça uma analogia, tão falsa como absurda, entre autarquia e governo, afirmando que à luz da lei anterior, a Câmara funcionava, numa analogia absolutamente idiota, como se o Governo tivesse ministros da oposição. Uma verborreia destas desmente-se facilmente: os ministros são escolhidos em função das pastas (ministérios) a que se destinam; os vereadores da oposição, fazendo parte da Câmara, não têm (tinham) automaticamente qualquer pasta (pelouro), apenas na medida em que o Presidente da Câmara o pretendesse: aliás, em boa parte das autarquias, os vereadores da oposição não têm qualquer pelouro, portanto o argumento não se justifica minimamente.
PS: A quem se interessar pelo tema, sugiro a leitura de uma série de textos da autoria de Vítor Dias,
aqui,
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