O que tem afinal o radicalismo pequeno-burguês a ver com a busca mediática? Que diabo faz o Serviço Nacional de Saúde misturado com o Tratado Constitucional Europeu, mais à praxe ao barulho? Que ligações entre tantos assuntos (aparentemente) desconexos?
Na verdade, parecendo um serrabulho político, até é bastante simples.
A quem quiser dar uma vista de olhos num par de obras, a saber "Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista" de Cunhal, e "Esquerdismo, a Doença Infantil do Comunismo", ficará a perceber o que é, essencialmente, um Partido de ideologia e prática esquerdista. Daí, perceberá o primeiro título: o radicalismo inconsequente e tantas vezes contra-producente, de um partido de bases recrutadas de entre a pequena-burguesia, e que precisamente pela fusão destes dois aspectos, assume um discurso socialista, essencialmente de fachada.
Bom, no panorama político-partidário deste rectângulo à beira mar plantado, a que (espécie de) partido se pode aplicar esta conceptualização?
Não será ao PS, que cada vez mais se assume crescentemente à direita, e de radicalismo tem muito pouco, embora lhe sobre a demagogia e a hipócrisia. Também não será do PSD, pura e simplesmente de direita (o Menezes diz que não, mas o Menezes é um idiota) e não radical. No CDS-PP também não encaixa, já que se por vezes radical, é-o à direita assumidamente. Note-se que qualquer um destes, tanto quanto pequena-burguesia, e talvez mais, têm na burguesia a sua força-motriz (não confundir com eleitorado).
Também não se aplica ao PCP, nomeadamente porque é nas classes trabalhadoras que tem a sua essência de militância e, também neste caso, de eleitorado, e precisamente por isso não tem na sua ideologia e acção lugar para o radicalismo.
O que sobra, o que sobra? Pois, o Bloco de Esquerda. A versão lusitana da caldeirada partidária, só que mal misturada. Onde, se não aqui, encontramos um partido claramente constituído e apoiado pela pequena-burguesia? Onde, se não aqui, encontramos o radicalismo como forma de agir e, efectivamente, de identificação? É então nesse aglomerado mal cimentado que encontramos, na sua essência, o radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, padecendo profundamente dessa doença infantil do comunismo, o esquerdismo.
Ora, o Bloco de Esquerda tem uma particularidade interessantíssima. Além de tudo acima referido, o Bloco não é um partido de origem, mas a fusão de partidos pré-existentes, a saber o PSR, a UDP e a Política XXI.
Assim, ao contrário de uma feijoada, onde todos os componentes se misturam harmoniosamente, o Bloco é como um cozido à portuguesa, onde tudo vem aparentemente misturado na travessa, enquanto afinal, todos os ingredientes se mantêm em separado, ainda que possam transmitir um pouco de gostinho aos outros.
Como se prevê, embora raramente assumido e menos ainda divulgado (se fosse com o PCP, era o aqui-del-rei com o massacre duns tais renovadores às mãos de uns tais ortodoxos), sob uma capa de harmoniosas e democráticas relações inter e intra facções, não só se passa metade do tempo às turras, como raramente é possível alcançar consensos face a questões centrais para a sociedade portuguesa.
Daqui se retiram cinco breves conclusões.
Primeiro, esse tão democrático aglomerado, profundamente igualitário, mais uma vez democrático, decidiu, porventura para ver se finalmente consegue mais facilmente gerar consensos nas questões determinantes, calar as suas próprias minorias ao conceder-lhes tempo de intervenção limitado à sua dimensão enquanto facção. O partido das democráticas e harmoniosas facções, esmaga assim as suas próprias facções.
Segundo, enquanto o primeiro não ocorre, inevitavelmente, por ausência de coerência programática, política e discursiva, tal partido não tem, por si só, capacidade de atracção eleitoral e de recrutamente de militantes, além dos desiludidos do PS e incapazes de lidar com o centralismo democrático que enquadra a organização do PCP. Talvez por isso, ao que tenho ouvido, ainda que não confirmado, ainda não tenha passado a barreira dos 5000 militantes: quiçá o salve o ortodoxo e estalinista PCP, com a convocação da Marcha pela Liberdade e Democracia.
Terceiro, como não tem, como disse por si só, ou seja, pelo seu programa e acção, capacidade de atracção de militantes e de eleitores, sendo que a falta de militantes se reflecte igualmente na incapacidade organizativa de ter actividade consistente e quotidiana junto do povo eleitor, o Bloco de Esquerda precisa, não pode efectivamente abdicar, do mediatismo para se suster e crescer.
Quarto, é precisamente pelo mediatismo que cresce, considerando-se que a sua actividade política se resume, na novidade, a questões mediáticas e secundárias, na imitação, às propostas efectivamente estruturantes para a sociedade portuguesa que copia do PCP, agora mediatizadas, embora na origem não o houvessem sido.
Quinto, por tudo o referido, o Bloco e o PCP encontram-se em pólos opostos da esfera mediática. De facto, é exactamente pela sua incoerência prográmatica, radicalismo inconsequente e desorganização interna, por contraposição ao programa aprofundadamente definido do PCP, inequivocamente manifestado na sua acção consequente, em torno do seu projecto para a sociedade portuguesa, e alicerçada numa organização sem igual no panorama político-partidário português, que o Bloco é a diva da comunicação social e o PCP a sua ovelha negra tosquiada.
Ao último importa silenciar, pelo seu programa e organização, e inequívocas alterações que o aumento do seu poder traria à sociedade portuguesa; ao primeiro importa potenciar, precisamente porque nunca transformará nada.
Posto isto, de onde vem então o Serviço Nacional de Saúde, o Tratado e a Praxe?
Precisamente exemplos com os quais pretendo demonstrar tudo o acima explicitado, nomeadamente a dualidade entre questões essenciais e acessórios e as diferentes mediatizações.
Se há (há varias, claro está) uma questão essencial para a sociedade portuguesa, essa questão é a saúde. Portanto, o passado, presente e futuro do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Qualquer pessoa (os neo-liberais não são bem pessoas) compreende que o SNS está, desde há vários Governos e particularmente no anterior e no actual, a ser desmantelado. Daí, é obviamente fundamental combater as políticas do centrão PS/PSD para este importante sector.
Até aqui tudo muito lógico. Também será lógico que o Bloco de Esquerda se queira envolver nesta importante luta. O que já não é tão lógico, é que a única forma que encontra para o fazer, seja copiando as posições e iniciativas políticas do PCP, efectivamente confirmando as hipóteses que anteriormente afirmei.
O Bloco decidiu lançar uma campanha nacional pelo SNS, nomeadamente por meio da distribuição de um documento informativo e de um abaixo-assinado.
Acho a ideia muito boa, nem podia deixar de achar, uma vez que não passa de cópia de uma mesma campanha lançada pelo PCP há já cerca de ano e meio, tendo o PCP entregue na Assembleia da República mais de 100,000 assinaturas em defesa do SNS, campanha esta iniciada em Outubro de 2006 e finda em Maio de 2007.
Ora, esta campanha do Bloco conta com a já habitual cobertura mediática, tendo sido noticiada em diversos órgãos de comunicação social. Acho muito bem que o seja, não acho bem (embora, a luz de tudo o que antes referi, compreenda perfeitamente) é que a mesma campanha, nessa altura original, então vinda do PCP, não tinha tido nenhuma desta atenção.
Dir-me-ão, como de resto já me tentaram dizer, que esta campanha agora é mais mediatizada porque conta com o apoio de notáveis como Manuel Alegre (que é contra a política do Governo para o sector, mas vota-a favoravelmente no parlamento), João Semedo (deputado bloquista), António Arnaut (uma das mentes do SNS e do PS), bastonários disto e daquilo.
Dir-me-ão, mas dir-me-ão mal. Porque então será caso para questionar, porque motivo estiveram estes notáveis ano e meio à espera da campanha do Bloco, quando podiam ter apoiado a do PCP, antecipando desse modo políticas de saúde que já foram avançando desde então. Não o fazendo, contribuiram por inércia para aquilo que agora criticam.
Ainda para mais, tal até poderia ser compreensível, se fossem agora apresentadas propostas inovadoras, que não o haviam sido por parte do PCP. Seria compreensível, mas não é, já que o apresentado no documento agora lançado, nada tem de novo relativamente à Resolução do Encontro Nacional do PCP para a Saúde. Até posso eventualmente estar enganado, mas não encontrei na página do Bloco nada mais aprofundado, até porque as Teses aprovadas na sua última convenção só falam de guerra e globalização (provavelmente a única questão a que chegam a consenso).
Dir-me-ão então que na altura não foi possível apoiar a do PCP, porque é um partido sectário, não se junta a ninguém, e nunca abdicaria da sua própria afirmação, em prol de um movimento independente pela saúde.
Dir-me-ão, mas dir-me-ão mal. Porque então será caso para questionar, que independência tem esta iniciativa, se é afirmada, promovida e executada pelo Bloco, como tal noticiada na comunicação social, referindo o apoio dos ditos notáveis mas nunca afirmando a criação de qualquer movimento de unidade, sendo de resto o documento distribuído, oficialmente do Bloco.
Portanto, se esta é uma iniciativa partidária do Bloco, como a anterior foi uma iniciativa partidária do PCP, importa indagar porque motivo se juntam tantos notáveis a esta, não o tendo feito quanto à outra. Importa indagar, então, quem são afinal os sectários. E também porque motivo é esta tão noticiada esta iniciativa, em oposição à do PCP: a isto já não respondo, parece-me que quem tiver lido atentamente até aqui já saberá a resposta.
Finalmente, e para terminar com um quase-humor, e analisadas a questão mediática, a polarização da cobertura noticiosa entre Bloco e PCP, e a forma como o primeiro copia o segundo nas questões essenciais, resta ver afinal o que traz o BLoco de novo.
Muito recentemente, na Assembleia da República, seguidamente à aprovação definitiva do Tratado Reformador (leia-se constitucional) da União Europeia pelos Governos europeus, tanto o PCP como o Bloco interviram na Assembleia.
Naturalmente, o PCP não podia deixar de interpelar o Governo quanto à questão, nomeadamente quanto à forma como o documento seria ractificado em Portugal.
O Bloco, por sua vez, mostrou aquilo que realmente traz de novo. Interviu sobre a praxe académica! Tema que, como qualquer anta sabe, é absolutamente determinante para o desenvolvimento do país. Terá sido tão surreal que até João Semedo, ex-comunista e actual deputado do Bloco, interviu em nome pessoal para congratular o PCP por levantar os temas realmente importantes (alguma coisinha, pelos vistos, ainda não esqueceu). É assim a esquerda de confiança...
PS: Lamento, mas quanto a esta última questão, não tenho links para fontes. Não tendo motivos para desconfiar, quem quiser que vá ver as gravações do Canal do parlamento.
PPS: Naturalmente, assinei a petição. Por um lado, porque as questões se mantêm actuais, por outro porque não sou sectário, ao contrário de outros que por aí andam...
Fica-se hoje a saber, se alguém porventura (se é que é possível) ainda não sabia, que não haverá qualquer consulta popular (leia-se, referendo) à Constituição Federal Europeia.
Sim, isso, Constituição Federal Europeia, pois é isso mesmo que é. Bem pode o nosso excelentíssimo primeiro afirmar que não quebra promessa eleitoral alguma, que "tinha um compromisso com o Tratado Constitucional. Agora é o Tratado de Lisboa, que não existia na altura. Não tem nada a ver uma coisa com a outra".
Desculpas esfarrapadas, quando vemos a Chanceler Alemã Angela Merkel afirmar "The substance of the Constitution is preserved. That is a fact", a 27 de Junho de 2007 no Parlamento Europeu, ou Giuliano Amato, ex-primeiro ministro italiano e segundo responsável pelo anterior texto, dizendo "The good thing about not calling it a Constitution is that no one can ask for a referendum on it" na London School of Economics a 20 de Fevereiro de 2007, ou ainda Giscard d'Estaing, ex-presidente francês e primeiro responsável pelo anterior texto, clamar "In terms of content, the proposals remain largely unchanged, they are simply presented in a different way (...) The reason is that the new text could not look too much like the constitutional treaty (...) cosmetic changes to the Constitution to make it easier to swallow", no Parlamento Europeu a 17 de Julho de 2007. De resto, o próprio Sócrates, "questionado em 25 de Julho de 2007, na SIC, sobre se um e outro texto não são, afinal, muito "parecidos", Sócrates disse que sim. "É a minha opinião", referiu."
A Constituição é a mesma, o federalismo é o mesmo, a militarização da Europa é a mesma. Só o nome se alterou, para um "bonito" Tratado de Lisboa.
Portugal, bem como os demais países pequenos, perdem. Reduz-se a representatividade no Parlamento Europeu, em detrimento do aumento por exemplo da Alemanhã. Acaba a rotatividade das presidências, acaba a obrigatoriedade de um membro de cada país na Comissão Europeia. O controlo dos mares passa para a União Europeia. É uma vez mais impulsionada a criação das forças armadas europeias. Por aí fora. Bem se vê, tudo propostas muito democráticas.
De resto, quanto a perda de soberania (a que ainda resta), estes dois dias foram já bastante ilucidativos. Há dois dias, foi o primeiro-ministro esloveno a dar recados a Portugal, afirmando "Penso que não seria sensato realizar um referendo" em Portugal, disse Janez Jansa, em declarações à agência Lusa, na capital da Eslovénia".
Mas como se não chegasse (claro está, chegava), não só o querido Cavaco mete também o bedelho, como assumidamente o faz enquanto moço de recados de Alemanhas, Inglaterras e outros que tais, nada interessadas em eventuais referendos para além do Irlandês, esse país de idiotas que ainda não alteraram a sua constituição nacional para deixarem de referendar questões europeias.
Claro está que ninguém está interessado em referendos. Aliás, é por decerto sintomático tanto receio de referendo. Em Portugal, a ter existido, eu cá até suspeito que teria sido aprovado, mas nalguns países mais ciosos da sua soberania, como anteriormente o fizeram a França e a Holanda, e agora se previa que o repetisse a Inglaterra, provavelmente seria reprovado.
Não pelas suas propostas miseráveis para a maioria dos países europeus, não! É porque as pessoas são estupidamente ignorantes, e não perceberiam a maravilha que é aquele texto. E como as massas ignaras não sabem ler politicamente, cabe a iluminados deputados tratarem do assunto: resta saber se o texto não é como é também por esse motivo.
Mas como tão bem nos lembra António Vitorino, não é só por causa dos ignorantes, é que referendar daria uma arma a quem é contra a construção europeia. Serão países? Imagino que não, a Constituição é tão boa que todos gostam dela. Deve ser, portanto, a Al-Qaeda.
Assim como assim, não é certamente pela quebra da promessa eleitoral que o povo se deve indignar. Já tinha mais era que estar habituado, já que o Governo só tem feito o que não disse que faria, e nada faz do que garantiu fazer. Compreende-se mal, portanto, a indignação do BE, que se limita a assinalar o não cumprimento da promessa eleitoral, ainda para mais indo apresentar uma moção de censura na Assembleia da República, que terá tanto de inútil como de inconsequente, mas sempre garante o necessário mediatismo, tão imprescindível ao mutante político português.
De resto, as posições da "esquerda de confiança" (olhe que não, olhe que não) quanto à União Europeia e sua constituição são conhecidas: nada contra, um bom projecto, mas enfim lá podia ser mais democrático, como dito sobejamente, se a Constituição Europeia viesse de uma assembleia constituinte seria aceitável. Nada contra a refeição, somente contra o arranjo floral.
Contrastam bem, sem dúvida, com as posições claras de quem, exigia o referendo, não por haver sido promessa de quem nunca as cumpriu, não por não gostar do método de redacção do texto, mas de quem sempre afirmou claramente ser de todo contra este modelo de Europa, neo-liberal, federalista, imperialista e, portanto, necessariamente militarista.
Só para terminar, e induzindo a analogia, se isto fosse na Venezuela, era uma ditadura horrorosa. Lá, ao menos, o povo é consultado e a derrota assumida democraticamente. Aqui, para não se correr o risco de ter de não assumir uma derrota, impõe-se e pronto.
Viva a democracia. Viva a Europa. O Rei vai nú.